quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Quase memórias do Estoril


Olho uma velha fotografia de Vila Morena. Num salto, minha memória vê os escombros do velho Estoril, caído assim, sem uma vela, por um redemoinho de um vento qualquer. E eu que o pensava tão inabalável quanto uma pirâmide. Num murmúrio de boca a boca ouvia-se o povo perguntar quem fora o responsável pelo desabamento. O mar respondeu estrondosamente que não, não estava naqueles seus dias de ressaca. Além do que existia o estorvo das pedras, impedindo o possível encontro desagregador. O boêmio, que sobrevivera na calçada à noite estrepitosa, lamentava que o Estoril caiu assim, sem mais nem menos, sem um porém, uma vírgula sequer. Um poeta afirmou que o Estoril caiu cansado do tempo, como um ponto final de um verso, sem cantoria nem nada. E o bêbado, de olhar atônito, ainda acrescentou: caiu sem tomar a saideira. O Estoril quase uma lenda, quase história sobrenatural. No meu álbum de fotos, lá estou eu a me banhar nas águas da piscininha que se formava pelo seguimento de pedras que impediam a fúria invasora do mar. Naquele tempo eu nunca ouvira falar em tisunamis. Mas às vezes as águas me metiam medo quando faziam um redemoinho violento e eu rodava feito Mulher Maravilha querendo imitar o super-homem. Queria mesmo voar e ver o que estava por trás do por trás. Mas o caminho das pedras não tinha volta e um dia eu acordei. Um postal da cidade me convida a visitar o novo Estoril - Fênix resplandecente reerguida das cinzas. Luz demais para a minha miopia. Parece não haver dúvidas de que ele sobreviverá a todos nós. Sua história se expôs, confundindo-se com a origem da Praia de Iracema, que era o Porto das Jangadas, ou Praia dos Peixes, época em que os pescadores ali costumavam deixar suas embarcações. Foi construído para ser a residência da família Magalhães Porto, lá pelos idos de 1925 e eu nem estava presente. Na década de 40 arrendaram a casa para os americanos instalarem um cassino onde havia grandes festas com a presença de jovens da alta sociedade. As moças, muito chegadas a um gringo, foram apelidadas de ''garotas coca-cola''. Após a guerra, a família Porto não mais quis retornar, alugando o prédio para os comerciantes portugueses que ali abriram um restaurante. E foi aí que a boemia tomou de conta, até os tombamentos sucessivos. O primeiro pelo Patrimônio Histórico de Fortaleza, na gestão Maria Luiza. Eu estava lá e assinei embaixo. Mas graças a Deus não estive embaixo quando o tombamento foi literal, traído por suas estruturas carcomidas e sua velhice maltratada. Vi com os próprios olhos da minha memória acesa os boêmios sumirem de um por um. Uns deram adeus para sempre: Rogaciano Leite, Sandra Gentil, Ana Beatriz e outros. Alguns partiram para outras plagas. Mas o Estoril ainda está lá, para quem quiser ver, convivendo com outra geração, outra história, outra praia, outros costumes, outros valores.

Procura-se

Ninguém é tão poeta
que não se engasgue com palavras insanas
e cuspa sangue sobre suas dores
Ninguém é tão poeta
que não saiba perder o tempo
acariciado e escorrido no cabelos da noite
Ninguém é tão poeta
que não fuja à criança eterna
que habita as primeiras luzes do um tênue amanhecer

INSÔNIA

Olhos que não se fecham remoem coisasno raio deixado pela porta entreabertaque dá para o corredor escuro.Narram tudo que não se quer ouvircaptam sons impossíveisrevelam inconfessáveis errosrecolhem do passado, como ventosasimagens vagas e ininteligíveistrazidas em câmara lenta pelo tempo.Dizem tudo e nada dizem dos amores anômalosesquecidos pelas ruas, hesitantes à luz mortiçados dezembros solitários...
Olhos míopes distinguem imagens fantásticasrecolhem o passado com as mão e o atiranas paredes do corredor escuro- argamassa que não se amolda e se deixa respingar,


enrijecer-se ao tempo e ao ventonuma forma encarangueijada.Divisam a rua, tortuosa e diáfana, que não terminava nunca.Olhos que não se fecham vão enchendo a bola frágilde coisas que passaram e esqueceram de passarSopram a alegria transida de frio, chove lá foraSopram a voz de alguém chamando de longea dizer que não suporta a dor de ser tristeSopram a solidão batendo na porta e no coraçãoe a passagem dos mortosSopram os olhos de neblina no dia em que fui me emboraSopram o feto morto e retido a explodir no amanhecer.

MULHERMAR


Amanheço, acordo

Desperto em Lagoinha

Durmo, alvoreço

Me enlevo, transpareço

Abro os olhos e sonho



Menina e mulher, mulhermar

Ando sobre dunas quentes

Que me queimam os pés

Choro ondas

Retorno à infância



Iracema menina

Lagoinha mulher

Os quatro cantos de minhas paredes

São rodeadas de mar

Meus cabelos são algas marinhas

Quando durmo e me banho de luar



Lagoinha me toma e me abraça

Me invade e me alaga

Me torna luaSolitária e nua.

Produção literária (publicada)

OBRAS INDIVIDUAIS:

Viagem - Secretaria de Cultura do Ceará - 1981- contos e crônicas

No fundo do poço - Secretaria de Cultura do Ceará (Prêmio Estado do Ceará em 1981) - novela

O Velho - Secretaria de Cultura do Ceará- 1983 - romance

O esconderijo dos anjos - Secretaria de Cultura do Ceará - 1985 - romance-reportagem

Dilúvio - Secretaria de Cultura do Ceará - contos - 1986;

Mulheres de papel - Fundação Cultural de Fortaleza - 1990 - ensaio sobre o personagem feminino na Literatura Brasileira;

Sem medo da delicadeza - Edições NAVE - 2000 - Ensaio sobre a violência masculina

OBRAS COLETIVAS:

10 Contistas Cearenses - Secretaria de Cultura - Fortaleza - 1981

Multicontos - Bando do Nordeste - Fortaleza - 1984

Antologia do conto Erótico - Realce Editora - São Paulo - 1992

O Talento Cearense em Conto - Maltese - São Paulo - 1996

Iracemar - Secretaria de Cultura - Fortaleza - 1996

Talento Feminino em Prosa e Verso - REBRA - São Paulo - 2002

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Caixinha de Pandora

A caixa era uma grande arca
onde a Esperança me acordou
de um século de paixão
Nenhum príncipe apareceu
para ressuscitar os meus lábios
com o beijo da aurora
“Campineiro do meu pai
não me corte os meus cabelos ...”
Vaguei pela noite afora
Minha mãe me penteou,
Descobri sete anõezinhos
na Caixinha de Pandora
Espelho, espelho meu
haverá coisa mais linda
que uma noite de lua cheia?
Minha bruxa feiticeira
Porque que me envenenou?
Primeira menstruação, perdi meu sapatinho
E o encanto se desfez:
o príncipe, virou lobo-mau
O esposo que tive morreu
Botei meu vestido de noiva
o meu diadema de flores
e lá me pus na janela:
“Quem quer casar com a senhora baratinha
que tem fitas no cabelo e dinheiro na caixinha”?

Grafites


Meu caderno de infância tinha uma casinha feliz. Um cacto mal rabiscado, do lado esquerdo um sol, ao fundo uma bananeira com um coração flechado que eu nem sabia de quem. O caminho traçado a lápis ia dar lá no jardim, onde inventei passeios de portas abertas para um lago rodeado de grama verdinha, pincelado num belíssimo campo florido. Nesse cenário, nunca podia faltar um gato de rabinho enrolado e olhos arregalados, espreitando maliciosamente por entre os pés de “nove-horas”, com suas flores coloridas.Meu caderno de infância tinha muitas casinhas felizes. Por trás de uma delas, subia um coqueiro alto indo bater lá no céu. Juntava-se às estrelas por entre todas as nuvens que ameaçavam chover. Chovia quando eu queria, nos desenhos que eu fazia. Sol e lua se encontravam e tudo se harmonizava sem nenhuma explicação. Para quê explicação?A bandeira do Brasil flamejava milimetricamente, nivelada pela régua gasta e meu com(passo) de criança, que se alvoroçava de amor pelo País que me deu origem. O pau da bandeira era fincado entre flores e margaridas que eu ainda não sabia desfolhar, eternizada no meu bemquerer.Com meu grafite eu desenhava o mundo inteiro! O que estava errado, eu podia apagar. Mas nunca apaguei estrelas. Quantas vezes me desenhei na noite a olhar as estrelas num céu limitado pelo espaço das páginas, mas tendo a certeza de que alguém no alto estaria a me olhar... Na minha imaginação de menina, era Deus quem me espreitava.O vento? Nunca o soube desenhar. Mas no meu auto-retrato, os fios dos meus cabelos se esvoaçavam ante a brisa de uma infância feliz. Escrevia embaixo: EU. Todos os contornos coloriam cenas abertas e um final feliz. THE END.Meu caderno de infância só nunca me revelou o tamanho da saudade que sinto agora. Nem da quase impossibilidade que tenho de desenhar o passado. Lá deixei os melhores momentos do mundo e os personagens mais próximos a mim: minha mãe, meu pai, meus irmãos e irmãs, que eu fazia todos de pernas finas, sorridentes e felizes. Eu ficava no meio, ninguém tinha ido embora... Toda a poesia da vida ficou naqueles grafites, de onde eu nunca saí.